Futebol
Tema: "Quando observar os adversários é tão importante como treinar a equipa"
Artigo publicado no jornal Público 9 Setembro 2012
Autor: Hugo Tavares
O scouting, como também é designado, é uma das actividades que mais influência têm ganho junto dos treinadores. Por que se faze como se faz foi o que o jornal PÚBLICO foi saber.
Nunca os gabinetes de prospecção e observação estiveram tão na moda no futebol. São feitas inúmeras análises dos jogos dos adversários e da própria equipa para que nada escape ao treinador no momento de planear da melhor forma a partida que se avizinha. O PÚBLICO falou com alguns dos homens que estão por trás dessa missão e revela como esta tarefa é desenvolvida em clubes de topo a nível europeu.
É através destes gabinetes de observação que chegam aos técnicos informações de como as equipas adversárias se posicionam com e sem bola (organização) e da maneira como reagem e se movimentam nos momentos fundamentais (transições) que são as perdas e as recuperações da posse de bola. Até as bolas paradas (esquemas tácticos) são estudadas ao pormenor, assim como as jogadas padrão. E há ainda as apreciações individuais de cada jogador, onde são reveladas as virtudes e os defeitos ao nível do seu jogo, mas também ao nível emocional — a forma como reage às diferentes situações de jogo ou, por exemplo, se é um jogador que, ao ser “picado”, pode “perder a cabeça”.
José Mourinho é um dos treinadores que, desde o início da sua carreira, mais importância deram a estes detalhes. Pouco depois de chegar ao Benfica, em 2000, Mourinho confrontou-se com a realidade do clube e, porventura, do futebol nacional: “Solicitei ao departamento de observação do clube a análise completa do adversário. Esperei, então, por uma observação detalhada da equipa do Boavista: os seus traços mais marcantes, a forma como jogava, os pontos fortes e fracos, o perfil dos jogadores, as suas qualidades e defeitos, etc. Enfim, nada de especial, tendo em conta a grandeza de um clube como o Benfica e os seus níveis de profissionalismo. Quando me entregaram, por escrito, o relatório, dei comigo a olhar para uma equipa com apenas dez jogadores… É verdade, pelo que me foi entregue, no desenho e na análise táctica, o Boavista jogava só com dez jogadores, sendo que o ausente era, ‘só’, o Sanchez, um dos jogadores mais influentes da equipa”, recordou José Mourinho no livro de Luís Lourenço, que tem como título o nome do treinador. Mas qual é a importância disto tudo para um treinador de futebol? “A vantagem é ter o conhecimento prévio [do adversário] e tudo o que isso permite em termos de preparação do jogo. Por exemplo, por vezes olhamos para a ficha de jogo, para a bola de saída e... déjà vu... depreendemos no imediato o que o adversário quer do jogo”, explica ao PÚBLICO Pedro Caixinha, actual treinador do Nacional e ex-adjunto de José Peseiro, com quem esteve no Sporting, Arábia Saudita (selecção e Al Hilal) e Roménia (Rapid Bucareste), equipas onde teve também a missão de observador/ analista.
Observar a própria equipa
Caixinha, no entanto, explica que o essencial continua a ser o ADN da própria equipa. Daí que a observação não se resuma apenas ao adversário: “Quanto à nossa equipa, analisamos todos os jogos, de forma a identificar aspectos nos diferentes momentos do jogo em que necessitamos de melhorar, bem como na realização de “compactos individuais” para os jogadores, com uma periodicidade de 15 dias.” O treinador revelou ainda que o Manchester United foi o clube que mais o impressionou, “pela forma como tudo é organizado e a forma como a informação chega totalmente tratada e sem perdas de tempo aos jogadores”.
O PÚBLICO conversou também com os observadores/analistas Sérgio Costa (selecção nacional) e Tiago Maia (adjunto de José Couceiro) para entender melhor o que realmente fazem e de que forma está o scouting entranhado no futebol profissional.
“[Na selecção] realizo a análise de adversário — observações directas [ao vivo] e indirectas [TV, vídeo, DVD]) — e análise de equipa — durante o jogo estou em contacto com um elemento da equipa técnica, fornecendo-lhe uma análise de uma perspectiva espacial diferente. Para além disso, juntamente com os elementos da equipa técnica, acompanho e observo jogadores potencialmente seleccionáveis. Por último, faz ainda parte das minhas funções a observação e análise de treinos”, revelou Sérgio Costa.
“O número de jogos [observados] é muito variável e depende do grau de confiança e certeza que tenho na identificação das rotinas que constituem o modelo de jogo de determinada equipa. Assim, já aconteceu ver dez jogos de uma equipa (Chipre), mas já aconteceu igualmente observar apenas quatro (Islândia) — equipa com rotinas muito definidas e jogo mais estereotipado”, adicionou o analista de Paulo Bento. Sérgio Costa esclarece ainda que quando a observação é feita na lógica do conhecimento do adversário “a importância é maioritariamente de cariz estratégico”. Mas destaca a relevância da análise da própria equipa: “Permite-nos olhar para o nosso modelo de jogo e corrigir aquilo que são os pontos fracos e potenciar os pontos fortes”.
O dia de um observador
Tiago Maia é um elemento da equipa técnica de José Couceiro, treinador que conheceu no Sporting. A última aventura foi na Rússia, ao serviço do Lokomotiv Moscovo. “Como treinador responsável pela análise de jogo, coordeno não só a análise de adversários como também a análise da própria equipa, que na minha opinião é mais importante do que a própria análise de adversários”, informa Maia.
“Os piores dias são sempre os que marcam o início do microciclo [sessão de treinos semanal], pois implicam finalizar a informação de análise de adversário e de equipa, algo que nem sempre é possível no primeiro dia. Esta informação é necessária na planificação do microciclo, sendo importante para o processo de treino e para a preparação da estratégia a utilizar no jogo. Nos dias seguintes começo a trabalhar no adversário que se segue, algo que normalmente intercalo com a preparação da informação que se transmite aos jogadores em conjunto com o líder da equipa técnica. A informação é sintetizada e procuramos que seja o mais focada possível na estratégia que temos para o jogo (relacionando análise de jogo da própria equipa com análise do adversário). Em estágio, aumentam as reuniões de trabalho com a equipa técnica e jogadores. Depois do jogo, o ciclo de trabalho repete-se”, explica.
Tiago Maia entende que tão importante como o conteúdo é a forma de comunicar: “Acreditamos que a melhor forma de passar a informação aos jogadores é através do vídeo, para verem com os próprios olhos aquilo que fazem (bem e mal) e o que o adversário faz. [A explicação do vídeo] poderá ser em equipa com o treinador a orientar o processo, por sectores e ainda individualmente… Aqui há alguma ? exibilidade que considero importante para manter os jogadores focados no que se pretende.” Relativamente à quantidade de jogos que costuma observar, Tiago Maia revela que o número varia em função de diversas variáveis. O tempo é uma delas, mas não a mais importante. Há adversários que consigo caracterizar bastante bem com três ou quatro jogos, noutros não é suficiente. Normalmente, quanto mais organizadas as equipas, mais fácil se torna fazer a análise, uma vez que se consegue diferenciar bastante bem entre o que é acaso e o que é organização pela frequência das acções.”
O que consta num relatório
Tiago Maia descreveu ao PÚBLICO como elabora os seus relatórios e explicou os vários momentos que existem num jogo de futebol: “Com diferenças mais ou menos significativas relativamente à terminologia, penso que entre os treinadores e os analistas em Portugal já existe uma clara separação dos momentos do jogo que são analisados e isto já acontece há algum tempo. Assim, são identificados dois momentos de organização (ofensiva e defensiva), dois momentos de transição (ofensiva e defensiva) e dois momentos estáticos que correspondem às bolas paradas ou esquemas tácticos ofensivos e defensivos. São seis momentos no total, quatro dinâmicos e dois estáticos. Naturalmente os dinâmicos são os mais difíceis de caracterizar, mas são os estáticos que cada vez mais fazem a diferença no futebol de alto rendimento”, começou por explicar Tiago Maia.
“Os momentos de organização são mais elaborados. Na fase ofensiva implicam todas as acções que vão desde a construção de jogo a partir de zonas mais recuadas até à forma como criam situações de golo e as finalizam. Na fase defensiva implicam as acções que se estendem desde o início de pressão pelas linhas mais avançadas até à forma como a equipa defende (bem ou mal) quando os adversários procuram criar situações de golo e finalizam. Por outro lado, os momentos de transição são mais rápidos. Prolongam-se apenas desde o momento de perda ou recuperação da posse de bola até ao momento em que as equipas assumem o seu posicionamento normal em organização. Por vezes, as equipas não concluem a passagem de um momento de transição para organização, o que acontece, por exemplo, quando uma equipa marca ou sofre golo em contra-ataque. A análise individual é também algo que, normalmente, considero separadamente mas também concebo perfeitamente que ela seja integrada na análise colectiva (por exemplo, dizer que um determinado jogador é referência na transição ofensiva da equipa é caracterizar o momento mas também fazer uma análise individual)”, concluiu.
Mas qual é a importância disto tudo para um treinador de futebol? “A vantagem é ter o conhecimento prévio [do adversário]. Por exemplo, por vezes olhamos para a ficha de jogo, para a bola de saída e... déjà vu... depreendemos no imediato o que o adversário quer do jogo”