Futebol - Entrevista
Tema: "O futebol é mais instrumentalizado hoje do que foi durante o Estado Novo"
Artigo publicado in Jornal Público 25 Abril 2013
Autor: Ricardo Serrado
Tema: "O futebol é mais instrumentalizado hoje do que foi durante o Estado Novo"
Artigo publicado in Jornal Público 25 Abril 2013
Autor: Ricardo Serrado
Historiador Ricardo Serrado defende que o futebol não foi um dos “efes” do Estado Novo. E também assegura que não houve um clube do regime
O futebol esteve longe de ser um veículo de propaganda do Estado Novo, que até atrasou o desenvolvimento da modalidade. Eusébio só não saiu de Portugal mais cedo porque tinha de ir à tropa. E não houve um clube do regime, embora o Sporting tenha sido o emblema que teve mais figuras ligadas ao poder. Estas são algumas das ideias defendidas pelo historiador Ricardo Serrado, no livro O Estado Novo e o Futebol, recentemente publicado.
PÚBLICO: No seu livro contesta a ideia de que o Estado Novo se ancorou nos três efes: fado, futebol e Fátima. Porque diz isso?
Quando parti para a minha tese, que serve de base a este livro, ia com a ideia comum de que o futebol tinha sido intensamente politizado e instrumentalizado neste período. Desde que me lembro, ouço dizer que Portugal era futebol, fado e Fátima. Para grande surpresa minha, apercebi-me que as coisas não eram de todo assim. O futebol não foi instrumentalizado, da forma como se diz. Nem há provas, documentos ou indícios de que o futebol tenha sido politizado durante o Estado Novo. E apresento neste livro vários argumentos que suportam esta ideia, como o facto de o futebol não ter sido profissionalizado mais cedo. E podia tê-lo sido, porque logo desde a década de 1920 ganhou uma importância social muito grande, mas o Estado Novo, ainda nos princípios da década de 1940, proíbe o seu profissionalismo.
Porquê?
Porque a ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espectáculo, de massas, era amplamente condenável para o Estado novo. E apresento vários documentos dessa intervenção, no sentido de impedir que o desporto fosse um espectáculo, um entretenimento ou uma profissão.
O Estado Novo nunca apostou no futebol, antes pelo contrário
Apesar desse travão do Estado Novo, o futebol continuou a ser a grande modalidade. Podemos dizer que o Estado Novo não foi nesse capítulo muito bem sucedido?
O ciclismo foi a modalidade rainha no final do século XIX e início do século XX, mas a partir de 1910, sobretudo em Lisboa e depois no Porto, o futebol ganha grande pujança. A partir da década de 1920, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje em dia identificamos como fenómenos de massas: a agressividade dos adeptos, a contestação à arbitragem e os campos cheios de gente. Antes do Estado Novo surgir, já o futebol era o desporto-rei.
O Estado Novo tentou mais controlar o fenómeno do futebol do que aproveitar-se dele para a sua propaganda?
O Estado Novo definiu uma política desportiva concreta, que era consonante com o resto da sua política. Sendo um regime autoritário à imagem do seu líder (reservado, que não ia em convulsões), e não tanto regime de massas como o fascismo italiano e o nazismo, o Estado Novo adapta o modelo fascista à realidade portuguesa e às ideias do seu líder. E no desporto segue essa linha. O desporto devia servir para educar, civilizar, desenvolver os valores defendidos pelo Estado Novo, que era completamente contra as massas e a profissionalização de qualquer modalidade.
O nazismo usou os Jogos Olímpicos de Berlim 1936 e o fascismo italiano o Mundial de futebol de 1934. Não detectou nenhuma pulsão do Estado Novo para aproveitar por exemplo das conquistas europeias do Benfica na década de 1960 e dos bons resultados da selecção no Mundial 1966?
Um pouco como acontece actualmente…
Sim. Quando o Benfica foi campeão europeu e a selecção ficou em terceiro lugar em 1966, a ideia era que não era o Benfica ou a selecção, mas sim o país. Aí o Estado Novo faz algum aproveitamento, mas é algo natural e espontâneo num governo que quer chamar a si alguns desses feitos. Não considero que seja um aproveitamento planeado. Foi algo que aconteceu e espontaneamente aproveitou para promover o país.
O clube que teve mais personalidades ligadas ao regime foi o Sporting. Mas não estou a dizer que o Sporting era o clube do regime ou que foi o mais favorecido
Exactamente. Quando o FC Porto é campeão nacional, vai à Câmara do Porto [desde que Rui Rio tomou posse, essa tradição mudou]. E o Benfica à Câmara de Lisboa. Até tenho ideia de que o futebol é hoje mais instrumentalizado, também de uma forma espontânea, do que no período do Estado Novo. Basta ver o Euro 2004 e a aposta do Estado no futebol, para o potenciar e para retirar dividendos com a sua promoção. O Estado Novo nunca apostou no futebol, antes pelo contrário. Na década de 1920, o futebol estava em desenvolvimento. Esteve nos Jogos Olímpicos de 1928 e tinha alguns jogadores de relevância internacional, como o Jorge Silva, Pepe, Augusto Silva e Vítor Silva. Já na década de 1930 e 1940 o futebol entra em período muito negativo, sofre goleadas e nota-se que a selecção poderia ter algum talento individual, mas a conjuntura não potenciava.
Em 1942, o Estado Novo criou a Direcção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (DGEFDSE), que é o organismo que vai tutelar todo o desporto nacional e o futebol ficou ali condensado e preso. E em 1943, lança as leis bases do desporto e diz que o profissionalismo é proibido. Foi preciso esperar até 1960 para alguma equipa portuguesa fazer algo relevante no panorama internacional. Penso que isso se deve em grande medida ao travão imposto pelo Estado Novo, ao aprisionamento do futebol, que já movia largas somas de dinheiro. O Estado Novo nunca quis potenciar o futebol.
Uma das ideias do seu livro é que Salazar não gostava de futebol. Mas não houve outras figuras do regime a tentar instrumentalizar o futebol?
O facto de Salazar não gostar de futebol não impedia que outros gostassem, como era o caso de Américo Tomás, Craveiro Lopes, Henrique Tenreiro, Cancella Abreu. Claro que havia agentes do Estado Novo que gostavam de futebol, mas sobre Salazar não há indícios de que tivesse clube. Aliás, poucas vezes se manifesta sobre desporto. Fá-lo para anunciar o Estádio Nacional, quando o Benfica foi campeão europeu em 1961 e no Mundial de 1966, mas é um homem à parte do fenómeno desportivo. Aliás, quando ele recebe o Benfica em 1961, vê-se que é um homem que não está muito à vontade com a gíria do futebol e nem sequer seguiu a carreira da equipa. Disse qualquer coisa como: ‘então foi muito difícil resolver o vosso problema de futebol?’.
Mas terá ficado impressionado com o impacto social das vitórias do Benfica de 1961 e 1962?
Não foi o Eusébio-jogador que foi impedido de sair, mas sim o Eusébio-militar ou cidadão
Outras das ideias comuns é que Salazar impediu Eusébio de sair o país. Algo que também contesta no seu livro…
Também defende que o Estado Novo não interveio de forma pensada nos clubes.
Terá a ver com a génese mais elitista do Sporting?
O Benfica foi o clube que teve mais oposicionistas declarados
Pelo contrário, na confrontação com o governo foi o Benfica quem mais se aproximou desse papel, nomeadamente por causa do hino censurado a Félix Bermudes (Avante Benfica)…
E teve mesmo um presidente comunista…
Essas simpatias ou antipatias pelo regime traduziam-se apenas em actos simbólicos?
Tal como o facto de a inauguração do Estádio das Antas ter sido feita a 28 de Maio de 1952 [aniversário da revolução que instaurou o regime do Estado Novo]…
Mas essas conotações limitavam-se aos dirigentes?
Das poucas vezes em que Salazar aparece com trajes desportivos, surge dentro de um veleiro e diz que se houvesse um desporto nacional deveria ser a vela, por estar ligada ao mar
Vislumbrou alguma tentativa de essas figuras próximas do regime tentarem chamar os adeptos para o seu lado político?
A interracialidade no futebol português foi usada pelo regime para passar uma mensagem positiva para o exterior, de um Portugal colonial harmonioso?
Olhando para o futebol em Portugal hoje, acredita que este desporto tem um papel mais central na sociedade do que aquele que teve durante o Estado Novo?
É verdade que Salazar defendia que o desporto nacional deveria ser a vela?